Ao absolver José Dirceu, o ministro Gilmar Mendes reafirma a garantia da Constituição e do Estado Democrático de Direito brasileiros
A vida de julgador realmente não é fácil. Há alguns anos, Gilmar Mendes era xingado por condenar José Dirceu no Mensalão. Agora, o mesmo ministro do Supremo Tribunal Federal é criticado por absolver o mesmo petista.
Mas há um 3º personagem nos 2 casos, além do magistrado e do político, o Estado Democrático de Direito. Os amigos e os adversários de Dirceu só podem ser uma coisa e outra porque existe a liberdade garantida pela Constituição. Quando o juiz decide a favor, os favoráveis vibram; se a sentença é contra, os contrários festejam; já o magistrado, alheio a agrados e desagrados, só pode vibrar e festejar o fato de o “livrinho” manter livre o país.
Os constitucionalistas formados na WU, a famosa WhatsApp University, estão de volta para comentar a notícia “Gilmar Mendes anula as condenações de Zé Dirceu na Lava Jato”, como divulgou este jornal digital, ou com texto dele derivado.
O juiz da causa, Sergio Moro, atuou com “motivação política e interesse pessoal” nos processos contra Lula, o que impediu “julgamento justo e imparcial” a Dirceu. Cadê o erro do ministro? A WU tem de abrir turmas e mais turmas de pós-graduação em DAW (direito achado na web), senão seus seguidores ficarão sem argumentos:
–“Bandidos devolveram dinheiro, o que comprova o crime”
Houve delito, sim. E o dinheiro devolvido não será reembolsado pelos corruptos. Mas essa é outra história. A suspeição entendida por Gilmar residiu na cabeça de Moro contra Lula, o que afetou o julgamento dos demais petistas. Ou alguém discorda que o ex-juiz curitibano lucrou com a desgraça alheia um ministério e o mandato de senador?
Dirceu não devolveu dinheiro porque nada havia subtraído, enquanto Moro dava saltinhos de alegria com os holofotes e os procuradores armavam um superbanco como butim. Se alguém deve reembolsar alguém é Moro, pagando a Dirceu pelos 2 anos em que o trancou na cadeia.
–“Deveria estar cumprindo a pena, não se livrando dela”
Num processo, Moro condenou Dirceu a mais de 23 anos de prisão. No Tribunal Regional Federal em Porto Alegre, a pena caiu para 8 anos e 10 meses. No STJ, para 4 anos e 7 meses. No STF, para nada. Quanto mais subiu o processo, mais caiu a pena. Tem sido assim desde que os colegiados acordaram para a incrível fábrica de horrores montada no Paraná por Moro&procuradores conluiados.
–“Logo agora que a esquerda tomou uma rasteira nas urnas aparece com essa”
Em maio, mês sem eleição, o STF já havia considerado a prescrição de outra pena desproporcional, de 11 anos e 3 meses.
O DAW descende do DAR (direito achado na rua). Querem quebrar a cabeça dos acusados, porém só até as penas capitais rondarem os seus. De uns tiram a vida, como a do reitor Luiz Carlos Cancellier, que cometeu suicídio depois de ser preso por uma aberração de que o Tribunal de Contas da União o inocentaria. De outros, muitos outros, a liberdade.
De Dirceu tiraram uma junção de ambas, pois o prestígio nacional de que desfrutava era sua vida, era como se sentia liberto, era o que lhe renderia a Presidência da República em 2010.
Ninguém criticou José Dirceu mais do que este articulista. Porém, não nas bases nem com as consequências das páginas que chegaram à operação Lava Jato. Atirar pedras é fácil, até porque geralmente é Golias tentando derrubar Davi. Se o estilo Moro tivesse triunfado, o Brasil estaria vivendo a barbárie. Bastaria alguém contar a uma autoridade que viu fulano furtar uma jaca para o acusado pegar 60 anos por lavagem de dinheiro, organização criminosa, associação para o tráfico, gaguejar em frente ao delegado, pisar em falso perto do japonês da Federal, olhar com cara feia para o órgão do Ministério Público ou apresentar-se despenteado diante do juiz.
Apesar da grita, o Supremo merece ser louvado por cortar as asas da tirania de Moro. Estava sem freio nem contrapeso. Primeiro, prendeu os empreiteiros e levou suas empresas à falência. Depois, iria para cima do restante do patrimônio. Se ninguém o contivesse, a etapa seguinte seria subjugar serventes e pedreiros. Sabe-se lá onde a fúria por dinheiro e poder levaria aquele sujeito. Todavia, ainda há juízes em Brasília.
A coragem de Gilmar, sobejamente conhecida, legou à nação diversas conquistas:
- a maior delas é o escrivão ad hoc lá dos confins saber que aqueles documentos que está digitando serão içados até a Suprema Corte sem arrepios no braço forte da lei;
- o guarda da esquina respeitar os direitos do motoqueiro por reconhecer que até os ministros se rendem a esse saco de pancadas da turba chamado presunção de inocência;
- o policial proteger a integridade do preso em flagrante por saber que os tribunais superiores já chegaram ao século 21 em termos de dignidade da pessoa humana.
E o Dirceu tinha mesmo condição de chegar à Presidência da República ou é recurso de retórica? Tinha. Assim como proporcionou os meios políticos e partidários que alavancaram Lula das 3 derrotas consecutivas ao Palácio do Planalto, Dirceu dispunha de articulação em tantos segmentos que sequer dependeria de 2º turno. Graças a inteligência incrível, capacidade de trabalho e talento para formar equipe.
Se Lula conseguiu para Dilma, com bem mais facilidade alcançaria por Dirceu, que era temido, respeitado, admirado e seguido. Sua cabeça ser levada a prêmio mostrou a relevância de sua figura. Os abutres não se contentariam com menos.