Pescador não morre, fica encantado com tanta beleza que Deus os dedicou, escreve Demóstenes Torres
O futebol tem mídia e provoca barulho, porém não é o esporte mais praticado do Brasil. Perde para os jogos eletrônicos (e-sports), o pedestrianismo (andar nas ruas e ao redor de parques) e a pescaria. Nas demais modalidades, o apogeu mundial é a medalha olímpica, a Copa da Fifa, o Super Bowl (a decisão do futebol americano), o LoLs Worlds e outras competições dos ases da tecnologia como os de Counter Strike: Global Offensive. Para o time da carretilha, no qual me incluo, a grande jogada não é aquela obra de arte do Falcão do futsal: é pescar na Amazônia.
Imagino a emoção vivida pelos pescadores que morreram em Barcelos (AM), no sábado (16.set.2023) próximo ao rio Negro. Além dos pilotos, eram 12 os que amavam a pesca. Todos afagando o próprio coração. Fiz diversas viagens para a região, 8 delas para Barcelos, duas naquele avião que caiu, a mais recente em janeiro de 2023, com minha mulher, Flávia; meus filhos Vinicius (com Alana) e Aline (com Ricardo). Saiu tudo perfeito, como sempre, pois até a infraestrutura ajuda. Vou continuar indo.
Análise de Gestão Aeroportuária realizada pelo LabTrans/UFSC (Laboratório de Transporte e Logística da Universidade Federal de Santa Catarina) para o Ministério dos Transportes, Portos e Avião Civil (era esse o nome em 2017, ano da pesquisa) aprovou o Aeroporto de Barcelos.
No quadro dos “Componentes Operacionais e Indicadores de Nível de Serviço Oferecido”, receberam avaliação “ótimo” o check-in e a inspeção de segurança e “subótimo” o saguão e a sala de desembarque com restituição de bagagens. É tão confortável que a sala de embarque e o nº de assentos foram considerados superdimensionados. Em 1º de setembro, a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) o fiscalizou e, de novo, passou no teste.
Pelos relatos do acidente de sábado (16.set.2023), o pouso começou na metade da pista durante uma tempestade. Antes da tragédia, o governo estadual já havia anunciado início de reformas no SWBC (código do Aeroporto de Barcelos) para a 2ª feira (25.set.2023).
Sua pista de 1.200 metros de comprimento por 30 metros de largura tem tamanho e conservação adequados. É um pouco menor e menos larga que a do Santos Dumont (1.323m x 42m), no Rio de Janeiro. Em São Paulo, Congonhas tem 1.940m x 45m e Guarulhos, 3.700m x 45m. Ou seja, Barcelos suporta aviões de grande porte, bem maiores que o EMB-110 com seus 15 m de largura e 4,73 m de altura.
Em 2007, era relator no Senado da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Apagão Aéreo quando um Airbus da TAM, hoje Latam, atravessou a pista de Congonhas e matou 199 pessoas. São inesquecíveis as cenas, sobretudo do fogo, transmitidas ao vivo. Em 2006, um jato Legacy chocou-se com um Boeing da Gol, que caiu e deixou 154 mortos. Para escrever as 944 páginas de conclusão das investigações, estudei bastante o assunto.
Frase que resume casos como o de Barcelos: uma só causa não derruba avião. O que houve na Capital Internacional da Pesca Esportiva, que em 2028 completa 300 anos de história, foi uma fatalidade.
Já pesquei em variados lugares, inclusive no exterior. Pescaria é um bálsamo. Um medicamento sem contraindicação. Previne ansiedade, depressão e síndrome do pânico. Eleva a estima. Congrega. A família das vítimas sabe que viveram praticando o que as deixavam felizes.
Citei uma frase que resume as tragédias, agora, cito uma palavra que sintetiza a pescaria: felicidade. A tristeza não cabe no barco nem no rio –e olhe que o Negro é o 7º do mundo em volume de água. Competições para mim eram os concursos públicos e as eleições, passei nuns, venci outras, perdi aqui e acolá. Pescaria é o jogo do ganha-ganha, todos são vencedores. Ainda que do fundo venha o anzol solitário, a gente soltará os mesmos sorrisos proporcionados pelos peixões que os incrédulos supõem personagens de conversa de mentiroso.
Na região de Barcelos, é tradição a Semana da Pesca nas pousadas –que ali são paradisíacas, em terra ou flutuantes. Numa delas, em 2022, me sagrei campeão com uma pirarara de 1,23 m. Noutra, em 2019, tirei uma piraíba de 1,20 m e fui o vice mais contente do planeta, pois fiquei atrás apenas de Aline com sua pirarara de 1,28 m. Minha filha e eu no alto do pódio, isso merece exclamação!
Meu recorde foi batido em casa: no nosso Rio Araguaia, peguei de anzol um pirarucu de 1,98 m e 116 kg. Cadê o Guinness Book para avalizar essas marcas? Desnecessário. O pirangueiro, profissional que é o verdadeiro anjo da guarda dos pescadores, mede e pesa. Seus números têm fé pública superior à de fotos e vídeos.
O alto nível de conscientização dos visitantes encontra parâmetro no pessoal das pousadas. Ninguém depreda. Como na publicidade dos órgãos ambientais, na floresta e nos rios não fica nada além dos rastros e não se leva nada além das recordações.
Traz o peixe para a superfície e devolve rapidamente para seu habitat, pausa rapidinha para pose. Nada de o machucar. No máximo, o pirangueiro escolhe o do almoço, que ele mesmo prepara, pois seu rol de habilidades vai de guia e piloto na imensidão do rio a cozinheiro capaz de agradar à chef Aline com um ensopado servido na areia branquíssima contrastando com a água negra que batiza o rio.
Folhas e outros materiais orgânicos dão a cor que atrai turistas e a alcalinidade afugenta os insetos, uma bênção para quem é alérgico, como a Aline. Na próxima, vamos saborear uma pirarara brindando aos colegas do 16 de Setembro.
No ganha-ganha, algo que a gente conquista é amizade. Conheci pessoas maravilhosas durante as incursões neste Brasilzão de meu Deus. Dentre os que conheci estava o Gilcrésio Salvador, que tinha uma pousada em Niquelândia, no Norte de Goiás. Foi um dos 5 goianos mortos no acidente, junto com meia dúzia de mineiros de Uberlândia.
É o círculo do pescador, ser humano fantástico que adora estar junto, que ri junto, que ouve música junto no meio do rio, que dança nos barcos, que volta à pousada louco para dar 5 da manhã e retornar à linhada, que sonha em alcançar setembro com a nova temporada que lhe renova a alma e que chega à residência prometendo se mudar definitivamente para o barranco e olhar para a água vendo o sentido da vida.
É ali que somos reconhecidamente campeões, pois o rio é um pódio que sempre nos cabe, assim como o céu abrigou meus conterrâneos Gilcrésio Salvador, Marcos Zica, Witter Faria e os 2 Assis, o Renato e o Fábio; também os vizinhos do Triângulo Mineiro Euri Santos, Guilherme Rabelo, Heudes Freitas, Luiz Carlos Cavalcante, Hamilton Reis e Fábio Ribeiro, e o médico Roland Montenegro, autêntico ungido que cuidou dos brasilienses. O comandante Leandro Souza e o copiloto Fernando Galvão, da Manaus Aerotáxi, também voaram para a eternidade.
De 1º a 8 de novembro, estarei de regresso, novamente com meu companheiro de pescaria e advocacia Marcelo Turbay, novamente feliz e novamente sorrindo, novamente preferindo peixes de couro como pirarara e piraíba aos de escama, mas disputando o “80up Torneio de Tucunaré”. No rio Negro, nenhum homem é uma ilha. Se for, seremos milhares, porque são 400 só nas Anavilhanas, arquipélago dentro do grande rio.
Aos familiares das vítimas, adapto uma oração de Guimarães Rosa: pescador não morre, fica encantado com tanta beleza que Deus nos dedicou.
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