Gonet e Dino há décadas preencheram o requisito do notável saber jurídico, escreve Demóstenes Torres
Lula acaba de indicar Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal e Paulo Gonet para procurador-geral da República por uma reunião de qualidades. O presidente queria lealdade às instituições, coragem, verve e convivência de terem consumido juntos no mínimo 1 saco de sal daqueles de armazém do interior. Até o princípio da consunção foi atendido: a figura de ambos se amolda perfeitamente.
Gonet e Dino foram aprovados em 1º lugar em 2 dos mais competitivos concursos, o do Ministério Público Federal e o da Magistratura Federal. Portanto, há décadas preencheram o requisito do notável saber jurídico. São professores universitários queridos por estudantes.
Gonet e um próximo colega de Dino no STF, o ministro Gilmar Mendes, compartilharam o trabalho como procuradores da República desde os anos 1980, a fundação de uma escola de excelência (o IDP, Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, também com Inocêncio Coelho) e a glória dos escritores, ganhar o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, uma espécie de Oscar das obras literárias. O “Curso de Direito Constitucional”, que publicaram em 2007, ficou entre as melhores da láurea nacional em 2008.
Gonet se dedica a pesquisa a tal ponto que foi aprovado numa das melhores faculdades de direito do planeta, a da britânica Universidade de Essex, nº 1 mundial em ciências sociais. Ali, fez mestrado em direitos humanos. Seu doutorado, na Universidade de Brasília, foi em direito, Estado e Constituição. Cacifou-se para dirigir a Escola Superior do Ministério Público da União, que reúne o MPF, o Ministério Público do Trabalho, o do Distrito Federal e o Militar.
Ainda conduziu o Ministério Público Eleitoral nas votações de 2022, as mais polarizadas de todos os tempos. Só lhe faltava mesmo o que agora conseguiu por absoluto mérito, o topo da brilhante carreira, a Procuradoria Geral da República. Ou seja, podem contestar a indicação de Lula por outros motivos, menos por falta de preparo do possível próximo PGR.
Além de dedicação e inteligência extremas, Gonet se caracteriza por ser estrategista. Assim, se sobressaiu nas diversas funções e para chegar até elas. Por exemplo, nas provas que o alçaram a procurador. Em meio aos principais concurseiros, seu destaque se deu pela tática que só teria resultado se aplicada por alguém de talento. Era o caso.
Nos testes discursivos e orais, Gonet caprichava já na 1ª frase. O examinador se interessava por continuar lendo ou ouvindo porque o início de cada resposta era com uma expressão lapidar do pensamento. No jornalismo, é o que se chama de pirâmide invertida. No caso de Gonet, atingiu o topo da pirâmide do saber.
Integra uma família de jovens intelectuais em que constam como espelhos o novo PGR e sua mulher, Flávia Gonet. De tão cordial, os alunos de Paulo o apelidaram de Ursinho. Apenas os alunos, hein… Que não se confunda a doçura de convivência dos próximos com o peso das teclas de que saem seus textos escorreitos, extremamente corretos e avessos a influências.
Temos em comum, além do MP (ele no federal, eu no estadual de Goiás), a devoção ao sacerdote Pio de Pietrelcina, o italiano cuja intercessão com o Altíssimo me beneficia de vez em qualquer hora, conforme os leitores deste Poder360 acompanham.
Portanto, tem conhecimento na área jurídica, opinião, postura e a decência comum aos devotos do Padre Pio. A bênção do brilhantismo pessoal se estenderá a um mandato sem invencionices, com destemor, sem perseguições, com democracia, consoante já vinha acontecendo com Augusto Aras.
Está no noticiário o espanto por Lula não optar por eventuais preferidos de sua base, que têm outras virtudes e talvez sequer autorizaram articulações da agremiação do presidente. Não foram escolhidos, mas quanto a Dino, a estrela no peito não era a do partido, mas a de xerife.
Num dia, já ministro da Justiça e Segurança, revelou sensibilidade e só quem conhecia sua história não ficou surpreso. Em 18 de abril de 2023, durante audiência com familiares de crianças chacinadas numa creche em Blumenau (SC), Flávio relembrou ter passado pela pior das dores, a perda de um filho.
Em 12 de fevereiro de 2012, Flávio andou de bicicleta no Plano Piloto, em Brasília, com o filho de 13 anos, Marcelo, carinhosamente chamado de Peixinho. Flávio menciona a última volta, de 8 km, entre o Senado e a 112 Sul. No dia seguinte, o flamenguista Peixinho passou mal na escola, o Maristinha, enquanto jogava bola. Era asma, que segundo o Ministério da Saúde “é uma das doenças respiratórias crônicas mais comuns”. A Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia contabiliza no país 20 milhões de asmáticos.
Ciclismo com Flávio no domingo, futebol com os colegas na 2ª feira e vítima de um hospital na 3ª feira. O mesmo Ministério da Saúde informa que só “em casos extremos e raríssimos [..] quando a crise está muito intensa e não é feito o tratamento correto, a asma pode matar”. No amanhecer de 14 de fevereiro de 2012, o Peixinho repetiu o bisavô Nicolau e saiu do rio para o mar da saudade.
Amigos ilustraram as redes sociais com mensagens lembrando os momentos das partidas nos estádios, das conversas animadas e de ele, um apaixonado por reggae, cantando “Talking to the Moon”, do Bruno Mars.
Feita para um amor, que pode ser o do pai para o filho, a letra traduz a nobreza de quem sente: “Eu sei que você está em algum lugar por aí”, um Peixinho como o Nemo, “em algum lugar distante”. Marcelo Dino recitava esses versos para alunas do Maristinha sem a beleza da voz de Mars, mas com a das palavras, igual ao que elas e Flávio lhe diriam hoje:
“À noite, quando as estrelas iluminam meu quarto
Eu me sento sozinho
Falando com a Lua
Tentando chegar até você
Na esperança de que você esteja do outro lado
Falando comigo também.”
O líder estudantil que presidiu grêmio e coordenou DCE havia sido deputado federal e presidia a Embratur ao ocorrer a tragédia com Peixinho. Seu caçula não o viu governar o Maranhão e obter votações consagradoras na reeleição e ao Senado. As conquistas do pai são anunciadas à Lua e alcançam Marcelo.
Narrado em solidariedade às famílias de Blumenau, o caso emocionou o Brasil. Ali não estava o passado de governador, o presente de ministro ou o futuro de integrante da Suprema Corte. Ali, estava um coração do tamanho do mundo, porque se fosse menor não caberia tanto amor por seu Peixinho. Ali, estava um rosto emoldurado pela dor, uma dor que não acaba, não cessa e não diminui.
Flávio Dino manteve a indignação em meio ao pranto e foi buscar o que oferece, justiça. Insistia que era inexplicável um menino entrar numa UTI com asma e sair de lá sem vida. Jamais compactuou com a impunidade, não cederia logo com causa tão descomunal. Viu a responsabilização ser reconhecida oficialmente. O seu Peixinho não foi sufocado pela doença, mas assassinado pela negligência.
Conheço o drama não no grau em que fulminou o ministro, todavia meu irmão Avelomar, que levava o nome do nosso pai, morreu num ataque de asma. Tinha 34 anos, era casado, deixou 2 filhos na 1ª infância. Foi em 1994 e não o esqueço. Imagine Flávio, que tinha o filho ao alcance da vista até os últimos suspiros, não mais poder vê-lo…
Outra particularidade de Flávio Dino é seu “marxismo” diferentão. Primeiro e único governador da história do Brasil eleito por sigla dito comunista, o PC do B, inclui na profissão de fé ser devoto de São Francisco. Uma de suas grandes alegrias foi visitar o túmulo do santo, na Itália. Também estive na basílica em que está sua cripta e concordo que, de fato, mexe com a gente. Bom, eu sou católico. Mexer com o Dino, que é “comunista”? Claro. O sincretismo religioso é uma das riquezas que fazem do Brasil uma nação única.
Quem convive com ele diz que o Flávio Dino mais frequente é o emotivo que emociona, o sensível que sensibiliza. Ótimo. Que no Supremo seja também o combatente, o contramajoritário, disposto a sofrer para fazer justiça, que não joga fácil de acordo com a vontade das ruas, sem jamais perder a ternura. Como no verso de Mars que Marcelo Dino cantava para as amigas, “quando o Sol se põe, alguém responde”. Esse alguém é Deus, que às vezes entra em nossas vidas em forma de Peixinho.