Falta umidade e sobra fogo no planeta; do madeireiro ao ambientalista de gabinete, a responsabilidade é difusa e coletiva
São Paulo começou esta semana como a metrópole mais irrespirável da Terra, segundo a AQI (Switzerland Air Quality Index and Air Pollution), plataforma de Zurique que mede a qualidade do ar podre e quente nas supercidades. O maior aglomerado urbano tem o problema dos demais, não importa o número de habitantes, todos vítimas do desrespeito.
O grito mais doloroso foi lançado há 2 meses pela SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria):
“465 menores de 5 anos morrem por dia no Brasil em razão de doenças potencialmente causadas ou agravadas pela poluição do ar”.
465 por dia! Enquanto se vê um jogo de futebol, sem os acréscimos, morrem 30 crianças como efeito do pessoal acelerando lá fora, dos setores da indústria ainda não adaptados à sobrevivência alheia e arquitetos de genocídio, de acordo com o Inca (Instituto Nacional do Câncer).
Acompanho a degradação dos rios e não é história de pescador. O rio Madeira, um dos 4 maiores do país e 17º do globo, é meu lar durante algumas semanas por ano. A vasta cobertura virou uma quitinete. A cada visita me surpreendo com a rotina do horror da largura e da fundura do que anos antes foi mar. Era um mundo, secou.
Aqui, ali, pululam nos grupos de WhatsApp atravessando-se a pé o Araguaia. O rio Negro não precisa nem de nado. Meu amado Pantanal está deixando de justificar o nome por lhe faltar o pântano. Falta umidade, sobra fogo, falta peixe, sobra fumaça. Chorar em seus leitos não acrescentará líquido ou tempo à existência desses tesouros naturais. Valham-nos as ciências. Inclusive, a jurídica.
O asteroide pequeno ressaltado por Zé Ramalho parece, infelizmente, fadado ao extermínio graças a uma de suas espécies, felizmente a que pode salvá-lo. O homem enfiou a Terra nesta encrenca e tem o dever de pesquisar e descobrir a solução para o ar, as águas, as florestas e os bichos. Se falhar por incompetência ou omissão vai desaparecer junto.
Fosse problema apenas de nações pobres, que o ufanismo classifica de “em desenvolvimento”, poderíamos preparar as despedidas coletivas, mas os ricos estão no mesmo barco encalhado. Portanto, o “epa!” tem o respiro do “oba!”.
Nos Estados Unidos, o mítico Mississipi seria lamentado por quem o cantou, Mark Twain. O rio Colorado está sumindo. O rio Yang-Tsé, número 1 da China, secou tanto que neste mês a ditadura local anunciou o lançamento de produtos químicos nas nuvens para esperar chuva. Igual está ocorrendo com seu maior lago de água doce, o gigantesco lago Poyang, chamado de “rim da China”.
As cenas são de necrose aguardando a diálise que nunca chega. No Mar Cáspio, que separa a Ásia da Europa, evapora mais água do que chega e o destino a médio prazo é nada sobrar.
Do madeireiro ao ambientalista de gabinete, da petroleira multinacional às entidades pilantras, a responsabilidade é também difusa e coletiva. Do gênero das passeatas pedindo o fim da violência a facções sustentadas pelo tráfico e pela corrupção, os protestos anti-hecatombe da natureza parecem tão patéticos quanto inúteis.
A polarização da política nacional se esborrachou nessa armadilha. Há quem comemore que em tal período foram desmatados tantos campos de futebol a menos que neste mesmo lapso temporal do semestre corrente. Nenhum sino dobrando pelas árvores que sucumbiram sem reflorestamento.
Ou mexe na conta bancária dos dirigentes da mineradora sem compliance ou a asfixia das populações continuará a quebrar recordes. Ou tolhe a liberdade individual de espalhador de plástico nos oceanos ou logo vão virar sertão e dá no coração de Sá & Guarabira a dor de reconhecer que o sertão vai virar mar. O rio São Francisco, lá para cima ou para baixo da Bahia, vai subindo depressa e a água salgada atrás, célere, tomando a frente do ‘Velho Chico’.
Não se resolve o calor com aparelho de refrigeração, mas com punição severa a quem o provoca. Outra saída é o cancelamento. Veja-se que aqui se sugere a contramão da modernidade: privação de bens e capital, profusão de grade e fim de redes. É a única língua inteligível a desmatadores ilegais, sujismundos de cursos d’água e congêneres bandidos do meio ambiente.
Esqueça-se a cantilena de que eles precisam deixar um local melhor para os netos morarem. Nem ouvem. Querem o deles nas Cayman, pois nenhum homem é uma ilha, mas alguém com uma ilha ninguém humilha.
Há resistência à redenção. Em todos os cargos que exerci tive de enfrentar os tais ecologistas (termo usado à época) de shopping e seus a um só tempo antípodas e próximos, os destruidores de rios e florestas.
Como professor da rede pública, os algozes eram os ônibus velhos despejando nuvens tóxicas a tal ponto que os alunos chegavam à aula com a camisa branca nem tão alva. Como promotor, os vilões enfrentados emporcalhavam a belíssima Chapada dos Veadeiros, que arde em chamas nesses dias de fogo, o Vão do Paranã, o Vale do Araguaia.
Como procurador-geral de Justiça, criei a Promotoria Ecológica Móvel para enjaular agressor dos recursos renováveis onde ele estivesse. Na Secretaria de Segurança Pública e Justiça de Goiás, repeti o sucesso com a Delegacia do Meio Ambiente a bordo de um barco a deslizar pelo Araguaia, contra e a favor da corrente. No Senado, empreendi esforço parecido nos projetos, inclusive, para tornar o cerrado patrimônio nacional.
Resultado: parece que tudo deu em nada, não só nas minhas ações, como na de tantos que ao menos tentaram.
É aí que volta à cena o cancelamento. As mídias sociais que prendem bilhões de pessoas às telas podem movimentar esse público e prender, literalmente, os facínoras dos recursos naturais renováveis. Cancelem as empresas que funcionam. Exibam a cara do infrator que funciona. Partam para a ignorância que funciona. É o homem furioso salvando o semelhante de sua própria fúria.