O que uma cidadezinha da Pensilvânia, outra ainda menor na Toscana e uma imensa daqui têm a dizer sobre os riscos da demonização na política.
Duas cidadezinhas dos 2 lados do Atlântico estão no noticiário desses dias por motivos bem diferentes. Com 13.000 habitantes, Butler, na Pensilvânia, costa leste dos Estados Unidos, viu o ex-presidente Donald Trump sofrer um atentado.
Dez vezes menor, Lajatico, na Toscana, Itália, sedia nesta semana 3 shows em comemoração às 3 décadas de carreira de seu filho ilustre, o tenor Andrea Bocelli, que apareceu para o mundo em 1994 ao ganhar o Festival de Música de Sanremo.
Butler entrou para a história do mundo no sábado (13.jul) e, na 2ª feira (15.jul), Lajatico entrou para a história deste articulista. Ganhei da minha mulher, Flávia Coelho Torres, como presente de aniversário de casamento, ingresso para a 1ª apresentação da série 2024 de Andrea Bocelli no Teatro do Silêncio, que dentro é indescritível e fora se veem as colinas toscanas, ou seja, mais inefável ainda.
Até chegarmos lá, o espetáculo inicial é da natureza. Deslumbrantes paisagens de verão. Os Apeninos centrais cumprem com força sua missão de irradiar beleza: videiras, oliveiras, girassóis, fenos em fardos e tudo que de belo pode ser reunido num só lugar.
O show, como esperado, foi de altíssimo nível. Andrea Bocelli, família e mais de uma centena de músicos com sublime performance. Cordas impecáveis e tudo o que faz a festa dos tímpanos exigentes. Os convidados são do nível de seus compatriotas Eros Ramazzotti, Tiziano Ferro e Elisa. O norte-americano Jon Batiste balançou a galera em 4 canções animadas.
Se os grandes prêmios de música do planeta –Grammy, Globo de Ouro, Bafta, Naacp e Critic’s Choice– tivessem peso em metal como têm em prestígio, o palco ia ruir. Mas o que fez o teatro vir abaixo foram os aplausos, pois o silêncio que a casa carrega no nome foi quebrado apenas por sons que justificam Deus ter nos municiado de audição.
Haveria algo que pudesse atrapalhar o pedacinho do céu?
Sim, a organização do evento. Ambiente de vaquejada. Filas de carros que atrasaram o show em mais de 1h30. Cadeiras de boteco enterradas na pedra. Filas quilométricas para tudo, às portas dos raros banheiros, nos locais de venda de bebidas, para todo lado. A aglomeração em busca de sanitário só não foi maior porque na metade do show já havia acabado a água e só restavam Coca-Cola e cerveja quentíssimas. Quinze minutos depois, nem isso.
Na saída, muita poeira e desorganização. Os europeus, que vieram de todo o continente, têm média de idade alta, potencializando o caos. Foi muito difícil. A mobilidade começava com i. Mais de 3 horas para deixar o local, uma para encontrar o carro no meio do pó da terra levantado por pés e pneus, outras duas para chegar ao hotel. Ainda bem que o show compensou tudo isso.
E o que tudo isso tem a ver com Donald Trump? Nada. Ou quase.
No fim de 2016, Andrea Bocelli encontrou-se com o então recém-eleito magnata e confirmou presença na sua posse na Presidência dos Estados Unidos. Comprou briga com a mídia de Júpiter às Fossas Marianas. Faltou receber apenas tiros de verdade. Assim como Joe Biden diz ter feito com figura de linguagem, a imprensa metralhou o tenor e os demais artistas que participariam da cerimônia.
Bocelli já cantou para o democrata Barack Obama e o republicano George W. Bush. Diante de Trump, não pôde, o quarto poder vetou. Felizmente, o atirador foi eliminado (infelizmente, matou um bombeiro) e não pode confirmar ou negar influência da frase infeliz de Biden, julgando ter chegado a hora “de colocar Donald Trump no alvo”.
Frases infelizes têm mirado outro político que vai disputar eleição neste ano, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes. Nova vítima da imprensa. É óbvio que não cometeu violência doméstica, trombeteada de Norte a Sul, porque a lei não prevê, nem teria como, pena para discussão entre casais, cadeia para DR de cônjuges, ainda que acirradas, ríspidas.
Honra-me muito ser autor original do que redundaria na Lei Maria da Penha. Minha proposição, que se chamaria Lei Consuelo Nasser, cedeu lugar à Maria da Penha porque o governo atrapalharia a tramitação de algo protocolado por quem o mirava com frases felizes na tribuna do Senado. Meu projeto, de 2003, previa inclusive o feminicídio, que ficou fora da Maria da Penha e surgiria somente em 2015. Portanto, não passo pano para agressor de mulher. E Nunes não é um deles.
A capital paulista, 1.000 vezes maior que Butler e 10.000 vezes maior que Lajatico, tem candidatos muitas vezes melhores que Biden e Trump. O principal adversário de Nunes, Guilherme Boulos, dispõe de qualidades próprias, não precisa de empurrão das fake news travestidas de jornalismo. O eleitor, idem, independe do tapetão midiático.
Resolver eleição com acusações falsas é estratagema mais velho que os Apeninos, assim como no tiro. Conta a história que quando Getúlio Vargas simulou que haveria eleições antes do Estado Novo, José Américo de Almeida, baita escritor e político que supostamente seria apoiado pelo ditador no pleito de 1938, iniciou um comício na maior cidade do interior da Paraíba falando gritado: “Boa noite, Campina Grande”. As balas pipocaram. Em seguida, ele arrematou correndo da bagaceira: “Até logo, Campina Grande”.
Meu pai, Avelomar Torres, foi duas vezes candidato em nossa terra natal, Anicuns (GO), pouco menor que Butler. Levava meu irmão mais velho, Adevaldo, para “chegar a botina” nos adversários, verbalmente, pois muitos se lembram dele como um dos maiores oradores de Goiás. Ele ficava embaixo para segurar “o pessoal do PSD” no cano do 38. Não raramente a coisa terminava em encrenca.
Esse modelo, repita-se, é mais démodé que o topete de Trump, que tiveram (o homem e o topete) uma sorte inigualável, já que o atirador treinara até horas antes. Por 1 centímetro ele perderia metade do tampão da cabeça, o cérebro voaria como o de JFK, o topete se arrastaria pela Pensilvânia.
O atentado a Trump reforça o que ressaltamos aqui com frequência: a proteção à autoridade se estende ao público. Em Butler, o assassino foi eliminado imediatamente e mesmo assim encontrou tempo para fulminar um bombeiro.
O caso dos ministros do Supremo Tribunal Federal é exemplar. A mídia expele sobre eles milhões de frases infelizes. Um maluco esteve armado no STF para matar o decano Gilmar Mendes. E os irresponsáveis do teclado acham que os integrantes da Corte devem abrir o peito para o perigo. Butler mostrou uma resposta da vida aos levianos. Agora, silêncio que tenho de ouvir Bocelli.